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A importância da ocupação e da estruturação do tempo no tratamento da perturbação mental

08 05 2012


A maneira peculiar como se dá o sofrimento mental, aliada ao estigma comumente associado a tudo que se relaciona às perturbações mentais, costuma confundir e retardar o processo de reconhecimento da doença e busca de tratamento, trazendo prejuízos que irão permanecer mesmo após o início de uma intervenção médica adequada. Isso acontece porque as pessoas costumam alterar sensivelmente sua rotina de actividades e suas relações para enfrentar vivências negativas decorrentes de sintomas como por exemplo medo, mal presságios, perda de energia, delírios persecutórios - e também como estratégia para evitar serem negativamente julgados e socialmente discriminados em conseqüência de suas atitudes estranhas (aos outros) ou mudanças de comportamento. Assim, actividades de estudo, trabalho, vínculos sociais e afetivos são reduzidos ou eliminados e a vida vai se resumindo a um cotidiano empobrecido, limitado a poucas atividades domésticas, relacionamentos esporádicos e superficiais e um grande vazio no lugar daquilo que, anteriormente à doença, se apresentava como projeto de vida ou perspectiva de futuro.


O tratamento medicamentoso, portanto, costuma ser eficaz para controlar sintomas específicos de cada perturbação, mas os danos cognitivos, ocupacionais e sociais tendem a perdurar mesmo com o tratamento correcto, perpetuando assim o empobrecimento de repertórios e relações. Para tais aspectos do tratamento das perturbações mentais faz-se necessária uma abordagem terapêutica integrada de reabilitação cognitiva e ocupacional.
Nesse âmbito terapêutico, as questões relativas à ocupação e estruturação do tempo comporão um eixo central de intervenção porque estão de uma forma ou de outra associadas ao conjunto de dificuldades que envolvem todas as esferas do convívio social e ocupacional em que os prejuízos e incapacidades, ainda que muito variáveis, existem e afetam a recuperação e o desempenho social, acadêmico, ocupacional e profissional e representam obstáculos vividos diariamente pelas pessoas que sofrem de perturbações mentais.


Em nossa vida, ocupar e organizar o tempo é tarefa contínua que pressupõe a integração de recursos e aspetos cognitivos, socioculturais e afetivos. Por isso, não há como abordar tal estruturação sem uma reflexão sobre a questão de porquê e para quê nos ocupamos na vida. Em outras palavras, ajudar alguém a reconstruir um cotidiano em que as actividades e as interações sejam vividas de forma significativa e com qualidade é um desafio diante da desistência de projectos anteriores ao início da doença e da dificuldade de redesenhar a vida de tal forma a encontrar caminhos alternativos satisfatórios.

 

A título de ilustração, examinemos uma situação trivial no que diz respeito à questão ocupação-organização do tempo de curto prazo:
- Qual a relevância, para a nossa vida, da organização das tarefas a serem realizadas num determinado dia da semana?
Poderíamos responder que tal organização é importante para que se consiga êxito nas diversas actividades que desempenhamos a cada dia e que isso faz sentido num cenário de responsabilidades e compromissos assumidos, cada qual numa ordem de prioridade e prazos definidos a partir de características inerentes a cada actividade ou assunto. Assim, se nos demoramos mais tempo na cama de manhã a pensar na vida, ou nos detemos mais no jornal ao pequeno-almoço ao nos impactarmos com uma determinada notícia, ou, ainda, no percurso do trabalho paramos para conversar com um velho conhecido a quem há muito não víamos, se deixamos para “o dia seguinte” aquele telefonema porque não sabemos que resposta dar a um convite, ou quando esquecemos de pagar uma conta em dia - cada pequena alteração/desorganização na ocupação do tempo nas tarefas de um único dia vivido reflete um mundo de sentidos, relações, responsabilidades e afetos, que nos dizem sobre o valor de cada ocupação a cada momento, ao mesmo tempo que afectam o conjunto de actividades desse dia, da semana e da vida.


Notem que neste simples exemplo, cada pequena alteração de uso do tempo é fruto de uma decisão, consciente ou não, a partir daquilo parece fazer mais sentido em cada momento dado. Somos humanos e, portanto, vivemos afetados por pessoas e acontecimentos a todo tempo. Mesmo as pessoas mais objectivas, focadas e metódicas são atravessadas por pequenas e grandes ocorrências que modulam de alguma forma seu sentido de ocupação e organização. Essas pessoas que se orgulham de um cotidiano muito organizado também assim o cultivam porque isso lhes dá sentido à vida! Ser prático, organizado e eficiente está portanto, a serviço de reconhecimento pessoal, social e profissional, o que, por sua vez, só faz sentido porque vivemos em uma rede de relações significativas. Então, para quem vive um cotidiano empobrecido, perdeu vínculos importantes e abandonou projetos de vida, que diferença fará a rotina de sono, inteirar-se do mundo pelos jornais, “fazer hoje e não deixar para amanhã”? Qual a relevância de se organizar o tempo em uma vida de sentido comprometido? Para quê lembrar-se das tarefas quando elas dão a sensação de levar a nada?


Assim, o tratamento que leva em consideração a ocupação e a estruturação do tempo precisa ser pensado a partir de uma abordagem integrada cognitiva e relacional, que possibilite à pessoa a reconstrução de um projeto de vida. O cliente e o terapeuta devem avaliar conjuntamente o sentido de cada tarefa/ocupação a partir de uma abordagem clínica que parta do cotidiano, começando com algumas perguntas norteadoras para avanços no processo terapêutico como, por exemplo:
Como é esse cotidiano? Quais pessoas participam dele? Quem poderá ser trazido para perto? Quais os espaços e lugares importantes? Que significado têm as actividades, tarefas, responsabilidades, nesse cotidiano? O que é difícil, e quais os recursos existentes, na experiência de cada um diante de situações, pessoas, planos, projetos, limitações? O que gosta de fazer, que interesses ainda conserva? Que projecto gostaria de resgatar, ou iniciar?


Esta é uma abordagem de reabilitação que favorece o exercício de auto agenciamento do cliente para ajudá-lo a voltar sentir-se e atuar como protagonista de sua própria vida. Tal aspecto é particularmente importante no tratamento das pessoas que sofrem de perturbações mentais graves na medida em que a vivência da doença comumente lhes subtrai a autonomia para exercer pequenas ou grandes atividades e para tomar decisões.


Assim, uma abordagem terapêutica abrangente deverá propiciar tanto o processo de fazer como o de falar sobre actividades, dando chance à exploração de novos sentidos para cada "fazer" nas histórias pessoais. A reordenação de um cotidiano com tempo e ocupações significativas será então, resultado do novo que pode surgir através de ensaiar, brincar, projetar, experimentar, aprender e errar, refletir, refazer e apreciar como algumas das ações terapêuticas que permitem aos terapeutas construir com os clientes um trânsito entre várias formas de conhecimento que facilite reconhecer, redescrever, refazer e ressignificar. Tais processos, conhecidos como ferramentas generativas vinculadas à aprendizagem, são os que permitem discriminar os diversos saberes presentes na forma como aprendemos algo, como fazemos e descrevemos nossas experiências e dessa forma, como vivemos a nossa vida.

 


Cecília Villares
Terapeuta Ocupacional.
Mestre em Saúde Mental pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Diretora adjunta da ABRE (Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia).

 

 

Publicações anteriores:

 

A integração das pessoas com perturbação mental: realidade Portuguesa.

 

O Projecto da Unidade de Diagnóstico Neuroquímico da Doença de Alzheimer do Centro de Biologia Celular da Universidade de Aveiro.

 

A acessibilidade às estruturas de Reabilitação em Portugal: situação actual, dificuldades e necessidades.

 

A minha experiência: como foi e como é viver com a perturbação mental.

 

Plano Nacional de Saúde Mental e Perspectivas para o seu Cumprimento.

 

 

 

 


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